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Os desafios da transferência de tecnologia no Brasil

Durante muito tempo, ao se falar em tecnologia, pensava-se em futuro. Atualmente, a palavra remete mais a dinamismo, diante da velocidade com que a tecnologia avança na sociedade de modo geral.

Assim como a tecnologia avança em todo o mundo e modifica-se de maneira acelerada, os contratos que regulam sua transmissão, em todos os níveis, por vezes também precisam sofrer adequações, bem como as leis e regulamentos que os regulam.

Muito embora o Direito não consiga acompanhar a velocidade com que a tecnologia evolui, muitas mudanças já ocorreram nos últimos 20 anos, permanecendo ainda diversos desafios no horizonte dos contratos de transferência de tecnologia no Brasil.

Nesse sentido, é importante trazer breves esclarecimentos acerca da proteção jurídica dos contratos de propriedade industrial e de transferência de tecnologia, para vislumbrar o atual cenário jurídico e as alterações legislativas em andamento, bem como o que se espera para o futuro.

A averbação dos contratos de transferência de tecnologia no INPI é requerida pela Lei nº 9.279, de 14 de maio de 1996 (“Lei da Propriedade Industrial”), que determina, em seu artigo 211, que “o INPI fará o registro dos contratos que impliquem transferência de tecnologia, contratos de franquia e similares para produzirem efeitos em relação a terceiros”. Os artigos 62 e 140 da mesma lei reforçam esta permissa, em relação a patentes e marcas, respectivamente, ao estabelecer que “o contrato de licença deverá ser averbado no INPI para que produza efeitos em relação a terceiros”.

Os contratos a serem averbados junto ao INPI podem ter como objeto o licenciamento de direitos de propriedade industrial e a aquisição de conhecimento, sendo subdivididos em três tipos contratuais cada um, de acordo com a Instrução Normativa 70, emitida pelo INPI em 11 de abril de 2017:

1 - Licenciamento de direitos de propriedade industrial:

  • Contratos de Licença para a Exploração de Patente (EP)
  • Contratos de Licença para a Exploração de Desenho Industrial (EDI)
  • Contratos de Licença de Uso de Marcas (UM)

2 - Aquisição de conhecimento:

  • Contrato de Fornecimento de Tecnologia (FT)
  • Contrato de Serviço de Assistência Técnica (SAT)
  • Contrato de Franquia (FRA)

Cumpre mencionar que o contrato pode ter mais de um objeto, hipótese na qual deverá ser paga em dobro a taxa do INPI, para averbação do contrato em mais de uma categoria.

Note-se que a averbação de tais contratos no INPI é também condição necessária para permitir a remessa de pagamentos ao exterior, bem como para qualificar a empresa brasileira para dedutibilidade fiscal dos valores pagos.

Não há como negar a enorme evolução pela qual passou a averbação desses contratos nos últimos 25 anos, com marcante flexibilização na análise dos contratos e faturas pelos examinadores do INPI.

Entre os grandes avanços dos últimos anos, pode-se citar a Resolução nº 156, emitida pelo INPI em 09 de novembro de 2015, que incluiu no rol de serviços dispensados de averbação diversos serviços tradicionalmente sujeitos a registro no passado, na qualidade de assistência técnica, como “serviços de manutenção preventiva, reparo, conserto, ajuste, calibração, revisão, inspeção, reforma, montagem, desmontagem, instalação e início de operação em equipamentos e/ou máquinas”, “homologação e certificação de qualidade de produtos”, entre outros. Optou-se por facilitar tais remessas, dispensando-se da necessidade de averbação os contratos e faturas a eles relacionados, por se entender em que esses serviços não envolverem transferência substancial de conhecimento nem efetiva capacitação da empresa brasileira.

Some-se a isso o fato de que o INPI deixou de analisar as normas fiscais e cambiais atinentes à matéria, ficando as partes diretamente responsáveis por esta análise, desde o advento da Instrução Normativa 70/2017.

Outro avanço a se destacar é a atual transparência das normas, que se encontram consolidadas na Resolução 199, de 07 de julho de 2017, contendo as diretrizes de exame para averbação ou registro de contratos de licença de direito de propriedade industrial e de registro de topografia de circuito integrado, transferência de tecnologia e franquia. A consolidação das normas referentes à averbação dos contratos torna previsível o processo e facilita o seu acesso e entendimento por todos os interessados.

Há, contudo, muito o que avançar, especialmente considerando que as normas fiscais ainda vigentes datam de 1958 (Portaria 436, do Ministério da Fazenda), 1962 (Lei 4.131), 1964 (Lei 4.506), entre outras. Some-se a isso o fato de que cada norma está contida em um diploma legal diferente, o que por vezes dificulta a interpretação mais adequada da matéria, dando origem a controvérsias e permitindo mudanças de interpretações nada favoráveis ao ambiente de negócios em geral. Exemplo disso é o atual entendimento da Receita Federal, no sentido de que mesmo contratos celebrados entre empresas nacionais precisam ser averbados no INPI para que o licenciado possa se valer da dedutibilidade fiscal dos valores pagos, o que não era o entendimento predominante no passado.

Atualmente, após obtido o Certificado de Averbação do contrato pelo INPI, é ainda necessário o seu registro no Banco Central, a fim de que a empresa brasileira possa prosseguir com a remessa dos pagamentos devidos, mediante a emissão do Registro Declaratório Eletrônico (RDE-ROF). Não obstante, em 29 de dezembro de 2021, foi sancionada a Lei 14.286 (“Marco Legal de Câmbio e Royalties”), que entrará em vigor um ano após a sua publicação, ou seja, em 30 de dezembro de 2022.

Com a entrada em vigor da referida lei, as remessas destinadas ao exterior a título de royalties, assistência técnica, científica, administrativa e semelhantes passam a depender apenas de prova de pagamento do imposto de renda devido. Foi retirada a obrigatoriedade de apresentação dos documentos relativos à operação na Superintendência da Moeda e do Crédito – SUMOC (órgão atualmente correspondente ao Banco Central). Dessa forma, será viável a remessa independentemente de qualquer registro, ainda que necessário para fins de dedutibilidade fiscal.

A nova redação do artigo 50 da Lei 8.383/91, conferida pelo artigo 24 da lei em comento, avançou ainda mais ao eliminar expressamente a necessidade de registro desses contratos no Banco Central, mantendo apenas a obrigatoriedade de averbação no INPI, para fins de dedutibilidade fiscal.

Além disso, foram revogados o artigo 14 da Lei 4.131/62 e o parágrafo único do artigo 50 da Lei 8.383/91, cuja interpretação conjunta limitava a remessa de royalties entre matriz e subsidiária ao limite máximo de dedutibilidade fiscal estabelecido na Portaria 436/58, do Ministério da Fazenda. Com isso, não há mais que se falar em limites de pagamento de royalties ao exterior, ficando as partes livres para negociar de acordo com as normas de mercado, mesmo quando a contratação envolver empresas do mesmo grupo econômico, com relação de controle. Persistem apenas as limitações para fins de dedutibilidade fiscal.

Dentre as regras de flexibilização cambial, o artigo 12 da lei autorizou a compensação privada de créditos e valores, entre residentes e não residentes, nas situações a serem previstas pelo Banco Central, ainda pendente de regulamentação. Trata-se de avanço importante, a fim de alinhar a legislação nacional a práticas internacionais há muito adotadas.

Percebe-se, portanto, o claro intuito do legislador de flexibilizar determinadas operações, revogando diversos artigos e modificando outros que aludem ao envio de divisas para fora do país.

Ainda que a Lei 14.286/21 esteja pendente de regulamentação em diversos pontos, não há como desconsiderar a clara intenção do legislador de desburocratizar a remessa de royalties ao exterior e facilitar a transferência de tecnologia no Brasil. De maneira resumida, esta norma será responsável por três modificações substanciais no cenário da transferência de tecnologia no Brasil, a saber: (i) as remessas destinadas ao exterior a título de royalties passam a depender apenas de prova de pagamento do imposto de renda devido; (ii) não será mais necessário registrar o contrato no Banco Central após obter o Certificado de Averbação do INPI para prosseguir com as remessas de pagamentos ao exterior; e (iii) os limites de ductibilidade fiscal fixados na Portaria 436/58 deixam de representar limites máximos de pagamentos entre matriz e subsidiária.

Entretanto, do ponto de vista tributário, ainda há muito a avançar para promover um real estímulo aos contratos de transferência de tecnologia no Brasil, na medida em que a possibilidade de remessas superiores aos limites de dedutibilidade fiscal dos royalties pagos pode, na prática, representar uma dupla tributação da renda (considerando-se a tributação no país de origem e a limitação da dedutibilidade local). A tributação de royalties é, inclusive, um dos desafios a ser enfrentado pelo Brasil para ingresso na OCDE, já que os royalties estão majoritariamente sujeitos às normas de preço de transferência no mercado internacional. Sabe-se que o governo brasileiro está estudando intensamente a revisão das normas de preço de transferência, às quais espera-se que os royalties estejam sujeitos em um futuro próximo.

Para acompanhar o ritmo da evolução tecnológica e permitir que o Brasil figure no mapa de estímulo à transferência de tecnologia em âmbito internacional, é crucial rever as regras de dedutibilidade de royalties atualmente em vigor.

Fonte:

O papel das patentes como estímulo à inovação Revista ABPI, Ed. 181 | Nov/Dez | 2022 - Especial 30 anos | Pág. 119:  Acesse aqui   |   PDF Download

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